quarta-feira, 7 de maio de 2008

Stella Pessôa discursa na APL.

Na última segunda-feira, dia 05 de maio, a escritora Stella Pessôa recebeu o prêmio do Concurso Literário Samuel Wallace Mac-Dowell da Academia Paraense de Letras - APL.
A abertura solene da cerimônia foi proferida pelo presidente da Academia, o imortal Edson Franco, que aniversariava. Após a composição da mesa pelas autoridades presentes, houve a entrega do prêmio, seguida pelo discurso da autora de "Mulher Com O Seu Amante", aqui postado no original em trebuchet.
Os nossos fotógrafos, diante da liturgia acadêmica, se apavoraram e não registraram porra nenhuma: são uns babacas!

O acadêmico João Paulo Mendes, Silvia Mendes, Hermínio Pessôa Júnior, Stella Pessôa, Vilma Falcão, Belisa Guimarães e Elizabeth Guimarães.
Raro momento capturado, já no cock-tail.
(foto: Isabela Pesôa)
O justo seria a Imortalidade da Academia!!!
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REFLEXÕES SOBRE CAUSAS E EFEITOS DA LITERATURA

Maria Stella Faciola Pessôa Guimarães
05/05/2008


“Tudo tem seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu”.
É tempo de agradecer a honraria que a Academia Paraense de Letras me concede com o Prêmio “Samuel Wallace Mac-Dowell”.
Nesta Casa, tão especial, creio que devo agradecer falando de literatura – uma breve apologia de alguns autores e livros, porque gostar de literatura é aprender a viver.

(I) ----------

Começo a lhes lembrar de Dante em sua “Divina Comédia”, na busca da salvação.
Nos versos, Virgílio, poeta latino a representar a razão humana, acompanha Dante pelo Inferno e o Purgatório, até o limiar do Paraíso, quando então a companhia de Dante será Beatriz.
No Canto V do “Inferno”, aparece no trajeto de Dante e Virgílio um casal amoroso: Paolo e Francesca, cunhados adúlteros. Estavam no Inferno depois de mortos pelo marido traído. Dante quis explicações para os mútuos sentimentos de Paolo e Francesca. O esclarecimento dela sobre o adultério que os levou ao Inferno: liam juntos uma história de amor.
“Líamos um dia nós dois, para recreio
(...)
éramos sós, e sem qualquer receio.
Vezes essa leitura nos ergueu
olhar a olhar, no rosto desmaiado,
mas um só ponto foi que nos venceu.
Ao lermos o sorriso desejado
ser beijado por tão perfeito amante,
(...)
tremendo, a boca me beijou no instante”.
O que pôde e o que pode a literatura de Dante? O que deflagra a literatura!? Paolo e Francesca liam uma história de amor, liam sobre um beijo de amor. Envolvidos pela literatura, fizeram sua própria história de amor. Arrebatados pela literatura, beijaram-se como no livro. O que a literatura deflagra!?
O texto é fetiche? Como é tecido, pode ser urdido com fios de ficção e fios da vida, que se combinam magicamente numa escritura, cuja fruição Roland Barthes chama de “kama-sutra da linguagem”. Não se sabe quem é um, nem se sabe quem é o outro. Não se sabe o que é fantasia, nem se sabe o que é real.
O que pode a fruição da literatura!?

(II) ----------

Prossigo a reminiscência em torno dos livros: Cervantes e seu engenhoso fidalgo Dom Quixote.
Começa assim:
“Num lugar de La Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não há muito, um fidalgo... (...) Era rijo de compleição, seco de carnes, enxuto de rosto, madrugador, e amigo da caça”.
Pinço mais na frente o que me importa aqui da descrição de Cervantes:
“É pois de saber que este fidalgo, nos intervalos que tinha de ócio (que eram os mais do ano) se dava a ler livros de cavalaria, com tanta afeição e gosto, que se esqueceu quase de todo do exercício da caça, e até da administração dos seus bens; e a tanto chegou a sua curiosidade e desatino neste ponto, que vendeu muitos trechos de terra da semeadura para comprar livros de cavalarias que ler, com o que juntou em casa”.
Mais adiante:
“Em suma, tanto naquelas leituras se enfrascou, que passava as noites de claro em claro e os dias de escuro em escuro e assim, do pouco dormir e do muito ler se lhe secou o cérebro, de maneira que chegou a perder o juízo. Encheu-se-lhe a fantasia de tudo que achava nos livros, assim de encantamentos, como pendências, batalhas, desafios, feridas, requebros, amores, tormentas, e disparates impossíveis; e assentou-se-lhe de tal modo na imaginação ser verdade toda aquela máquina de sonhadas invenções que lia, que para ele não havia história mais certa no mundo”.
Dom Quixote, louco?! Enlouquecido pelos livros?!
Vamos ler o professor Eidorfe Moreira:
“Considere-se, em primeiro lugar, que sempre que formos ‘sensatos’ ou ‘normais’, isto é, sempre que pensarmos e agirmos em termos de bom-senso, jamais ultrapassaremos a craveira comum, pois como ‘sensatos’ ou ‘normais’ nós nos realizaremos em função do meio em que vivemos, o que importa em dizer que ‘bom-senso’ é uma questão de adaptação”.
Prossegue o revolucionário Eidorfe:
“Só como ‘idealistas’, ‘loucos’ ou ‘visionários’ é que podemos nos realizar a nós próprios, como seres ou valores autônomos em face do meio, sem obediência a figurinos impostos por ele”.
Para Eidorfe, a figura esguia do herói cervantino se encurva e forma um sinal de interrogação, a mais expressiva incógnita da natureza humana.
O que fez a literatura com o engenhoso fidalgo!? Expressa a natureza humana tal qual um sinal de interrogação? Como a literatura tem impacto na natureza humana!? O que faz a literatura de Cervantes!? Explora aspectos fundamentais da condição humana?

(III) ----------

Um pouco da grandeza de Shakespeare. Como deixar de me referir a uma leitura clássica, impossível de ser interrompida, porque sobretudo discute a sempre atual inquietação do homem com sua finitude? Como não citar Hamlet e o abalo que produz em cada um de nós?
A querer resolver sua dramática questão de ser ou não ser, o príncipe da Dinamarca, na segunda cena do segundo ato, lê e medita no castelo, em ambiente cercado de livros. Questionado por Polônio – conselheiro de Estado – sobre o que estava lendo, respondeu com altivez:
“Palavras, palavras, palavras”.
Apenas esta resposta:
“Palavras, palavras, palavras”.
Que livro Hamlet estaria lendo? O que as palavras daquele livro, lidas mas não pronunciadas, fizeram em Hamlet!? Ajudaram-lhe a entender o ser humano? O que pode a literatura de William Shakespeare!? O que faz a literatura do famoso bardo!?

(IV) ----------

Agora, Dostoiévski. Escolhi novela estorvadora: “Memórias do Subsolo”.
Trechos muito chocantes:
“Além da leitura, não tinha para onde me voltar”.
“Um homem inteligente do século dezenove precisa e está moralmente obrigado a ser uma criatura eminentemente sem caráter; e uma pessoa de caráter, de ação, deve ser sobretudo limitada”.
“Juro-vos que uma consciência muito perspicaz é uma doença”.
“Esta é a convicção dos meus quarenta anos”.
“Foi por isso que tomei da pena”.
Mesmo que a expressão se refira ao século XIX – e já estamos no século XXI –, ela me arrepia...
Inteligência e caráter inconciliáveis!? A novela investe contra tudo e contra todos? Dostoiévski sentiu na pele? Ou pura ficção? Dostoiévski escreveu “Memórias do Subsolo” na cabeceira de morte de sua mulher numa situação de aguda necessidade financeira.
Para Italo Calvino, a literatura jamais teria existido sem uma forte introversão, sem um descontentamento com o mundo, tal como ele é, ou parece. Ultrapassar os limites impostos ao homem exige terríveis sacrifícios.
A travessia de Dostoiévski: fazer literatura, literatura de gênio, que inventa vidas para viver de algum modo. São possibilidades de salvação – para o escritor e para o leitor –, verdadeiros anticorpos que tentam coibir a expansão dos flagelos e das adversidades.
Hoje, no século XXI, o que pode a literatura de Dostoiévski? Ainda revolve os desvãos da alma humana? Mexe com o homem contemporâneo?
Octavio Paz justifica que a revelação de nossa condição é também a criação de nós mesmos. O mundo não está fora de nós, nem rigorosamente dentro de nós. Complexo... Será mesmo a literatura algo que o homem faz e, reciprocamente, faz o homem?
O que fez e o que faz em nós a literatura de Dostoiévski, onde tudo se transforma em sentimento e onde os sentimentos são promovidos à categoria de valor e de verdade? Literatura abalável!?

(V) ----------

Livros que abalam! Livros que perturbam! Nietzsche, filósofo que fez filosofia com cara de literatura, sabia disso:
“Conheço em alguma medida minhas prerrogativas como escritor; (...) a familiaridade com meus escritos ‘corrompe’ o gosto. Simplesmente não se suporta mais outros livros. (...) Mas quem comigo tem afinidades (...), experimenta nisso verdadeiros êxtases do aprender: pois eu venho de alturas que asa nenhuma cruzou, eu conheço abismos onde pé algum jamais se extraviou. Disseram que é impossível pôr de lado um livro meu – que eu perturbo inclusive o repouso noturno. Não existe em absoluto espécie mais orgulhosa e mais refinada de livros – eles alcançam aqui e ali o mais elevado que se pode alcançar na Terra, o cinismo”.
Quanto ainda a estudar da filosofia sofisticada de Nietzsche!? Ainda não desisti de entender o que falou Zaratustra:
“O homem é uma corda, atada entre o animal e o além-do-homem – uma corda sobre um abismo. Perigosa travessia, perigoso a-caminho, perigoso olhar-para-trás, perigoso arrepiar-se e parar”.

(VI) ----------

A travessia... E o tempo?! Sem me desligar dele, não posso deixar de louvar um escritor brasileiro – entre os que li e reli, o maior de todos: Guimarães Rosa.
Encerro com “Grande Sertão: Veredas”. Naquele sertão do tamanho do mundo, vejam o depoimento do Riobaldo que, ainda rapazola, foi dar aulas para o poderoso Zé Bebelo:
“O que ele queria era botar na cabeça, duma vez, o que os livros dão e não”.
Sob a orientação de Riobaldo, Zé Bebelo grudou nos livros. Noites a fio. Queimava três velas no escuro. Não olhava relógio. Dormia sobre os livros. Até aprender.
Sugiro que abram outra vez e outra vez “Grande Sertão: Veredas”. E avaliem a importância, nos rumos da obra, desse episódio entre Riobaldo, Zé Bebelo e os livros.
“Grande Sertão: Veredas” é para ser lido e relido a vida toda. Tem despertado inúmeros estudos, críticas, interpretações. Não há como não nos impactar. Eis o depoimento de Afonso Arinos:
“Cuidado com este livro. (...) É como certos casarões velhos, certas igrejas cheias de sombras. No princípio, a gente entra e não vê nada. Só contornos difusos, movimentos indecisos, planos atormentados. Mas aos poucos não é a luz nova que chega; é a visão que se habitua. E, com ela, a compreensão admirativa. O imprudente ou sai logo, e perde o que não viu, ou resmunga contra a escuridão, pragueja, dá rabanadas e pontapés. Então arrisca-se a chocar inadvertidamente contra coisas que, depois, identificará como muito belas”.
Por fim, digo-lhes que trago Rosa e fecho com Rosa até porque ele toca em questões que levantei antes e que alguns podem entender como sentimentos pessimistas de minha parte, especialmente pelos fragmentos que hoje escolhi de Dostoiévski e de Nietzsche.
Falava Riobaldo no “Grande Sertão: Veredas” para aquele indefinido senhor a quem dirige seu relato:
“Esta vida está cheia de ocultos caminhos. Se o senhor souber, sabe; não sabendo, não me entenderá”.
Isso mesmo, Riobaldo!? Para entender, é preciso saber? É preciso ter sentido? É preciso ter vivido? É preciso querer partir quando lhe queimaram os navios? É preciso ir ao fundo do poço, ou perto dele, sem saber se lucidez e loucura são a mesma coisa? Do ponto de vista do escritor ou do leitor? Para Gaston Bachelard, não há escritores, somente leitores. A leitura é de cada um.
Mas o Riobaldo não nos deixa sem esperanças:
“O correr da vida embrulha tudo, a vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quer da gente é coragem”.
Na esperança de Riobaldo, constato até uma certa concessão ao filósofo Kierkegaard e àquela fé que entra em cena quando cessa a capacidade da razão:
“Deus existe mesmo quando não há. (...) O mundo é longe daqui”.
Não tenho as “rabugens de pessimismo” admitidas por Machado de Assis no retrato de Brás Cubas. Não tenho aquelas “rabugens” porque creio no que crê Riobaldo:
“Deus existe mesmo quando não há. (...) O mundo é longe daqui”.

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“Tudo tem seu tempo determinado, e há tempo para todo o propósito debaixo do céu”.
É tempo de despedida.
Procurei agradecer a honraria que a Academia me concede falando a vocês da literatura. Entre aspas. Com muitas aspas.
Fico grata por ser tratada aqui com distinção e gentileza. O soberano tempo do “Livro do Eclesiastes” me faz encerrar.
Muito obrigada. Sem aspas.


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Discurso PROFERIDO EM SOLENIDADE DA ACADEMIA PARAENSE DE LETRAS, COMO agradecimento pelo Prêmio “Samuel Wallace MAC-DOWELL” CONCEDIDO AO LIVRO DE CONTOS “MULHER COM O SEU AMANTE”.


Um comentário:

  1. Oi haroldo.

    estive pesquisando discos virtuais. Seguem algumas sugestões.

    ADrive - é o gratuito com maior espaço disponível (50 GB). www.adrive.com

    Locaweb - Tem várias opções de espaço para armazenamento pago. O maior disco disponível é o de 100 GB com taxa de transferência de 4TERA! Uma porrada. Custa R$ 179 mensais e inclui outras funcionalidades como editor de imagens, e facilidades para visualização de vídeos.

    http://site.locaweb.com.br/assinaturas/discovirtual

    Dropbox. É para mac, mas vale a pena dar uma conferida no vídeo de apresentação. Discos virtuais integrados aos PCs. Esse é o futuro. http://www.getdropbox.com/

    Esses foram os que eu encontrei com maior capacidade de armazenamento, por enquanto.

    Se encontrar mais, te aviso.

    simoneromero@yahoo.com.br

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