"Belém Artística – I
Machado Coelho*
Os Gallé de Antônio Faciola
Vez por outra os jornalistas paraenses — Carlos Mendonça à frente — põem em relevo o esplendor artístico a que atingiu Belém no período de 1888 a 1918, as três décadas do 'Retrospecto Histórico' de Teodoro Braga.
A cidade inteira era um autêntico museu e as galerias de pintura pertencentes a amadores, ao Estado e à Prefeitura Municipal ostentavam telas dos mais renomados pintores nacionais e estrangeiros — antigos e modernos — e objetos de arte do mais apurado gosto, carreados sobretudo da França, da Itália, da Inglaterra e da Holanda.
Carreados é bem o termo, pois não eram peças isoladas adquiridas por este ou aquele expert, mas 'opulentas coleções', como as classificou, em 1908, Osório Duque-Estrada, 'para dar idéia da paixão que se apoderou dos paraenses por tal gênero'.
Expoentes desse mostruário artístico eram os tesouros de Paes Barreto, já tantas vezes recordados, e os desse fabuloso Antônio Lemos, de quem Humberto de Campos deixou este retrato:
'Como Augusto, ele apreciava os vasos famosos — e tinha-os, nas suas salas, às dezenas. Como Francismo I, amava as esculturas — e elas se alinhavam, mudas, repousando em custosas peanhas de mármore. Como Lourenço de Medicis, adorava os pintores — e as telas se penduravam, largas, nos vinte muros do seu pequeno palácio'.
Mas, para mal de todos e infelicidade geral de Belém, não houve um 'fico' para essas jóias inestimáveis, que assim se dispersaram pelo mundo afora.
Resta hoje na cidade muito pouco, quase nada desse manancial artístico, que conservado, de preservado colocaria, o Pará no plano dos grandes centros de civilização e cultura.
Onde agora, se não em museus de categoria, iremos encontrar um Ticiano, um Rubens, um Velásquez, um Murillo e tantos outros de que se orgulhava a galeria Paes Barreto.
Refletindo sobre isso é que reputo um milagre o que ainda se vê no Palacete Faciola, último reduto, nesta capital, do que se deve e pode chamar, a justo título, uma galeria de objetos de arte.
Transcende aqui os limites do jornal a descrição dessas peças: telas, alabastros, bronzes, esmaltes, porcelanas, mármores, móveis e tudo aquilo em que deixaram sua marca mãos frementes de anseios plásticos.
Enfatizo apenas, por ser objeto desta crônica, a numerosa coleção de vasos Gallé em todos os tamanhos e formatos, com a delicadeza e o lavor únicos que fizeram famoso o seu fabricante.
Adquiriu-os em Paris Antônio Faciola, que tinha conhecimento e sensibilidade para dénicher as verdadeiras obras de arte, a ponto ali de um antiquário, iludido pelo porte do comprador, tomá-lo por um príncipe russo, na época homens de dinheiro e bom gosto.
Russo, não, príncipe, sim, no que essa palavra significa (ou significava) finura de trato, amor ao belo e consciência daquilo que faz as delícias do espírito.
Gallé (Emile) tornou-se famoso na Exposição de Paris de 1878 com o cristal Claire de Lune, inspirado na poesia de Verlaine, a quem ofereceria, anos depois, um rico vaso ornado de clematites... que o poeta trocou incontinenti por quarenta doses de absinto.
Em 1890 o artista já é nome universal e cria na velha capital da Lorena a célebre 'Escola de Nanci', onde com sua técnica de vidreiro, sua arte de desenhista e sua paixão de horticultor fabrica esses admiráveis vasos de formas souples e decoração exuberante, com as folhas, flores e libélulas que fizeram a graça do estilo Art Nouveau.
Assim e nisso reside principalmente o seu valor, os vasos Gallé não são apenas decorativos, mas também representantes do espírito de uma época em suas variadas manifestações de cultura artística.
Podemos dizer, sem incorrer em erro, que estão na estética de Ruskin, ao proclamar que 'toda forma bela é emprestada da natureza'; na arquitetura de Horta, o belga, decorando as suas construções: 'da planta, deixo a folha e a flor e empregoa a haste'; na música nuancée de Debussy, o de Prélude à l’apres-midi d’um faune e de Pelleás et Mélisande; e finalmente na concepção estética do próprio Gallet, afixada no letreiro da porta de seu atelier: 'Nossas raízes estão no fundo dos bosques, na margem das fontes, sobre os musgos'.
São esses objetos que integram as coleções da galeria Faciola, hoje sobre os desvelos filiais dos irmãos Oscar e Iná, no maior e melhor dos cultos à memória de seu pai, deputado, senador, banqueiro, livreiro, Prefeito de Belém, mas antes e acima de tudo o artista amigo de Carlos Gomes, que o intimou, um dia, a 'voltar ao seu piano'.
Não voltou. Foi um bem? Ninguém o sabe, mas talvez se voltasse não houvesse legado a nossa terra e a nossa gente esse mundo de coisas belas que fizeram do Palacete Faciola o único e verdadeiro museu da Belle Epoque no Pará."
Texto publicado no jornal A Província do Pará de 29 de fevereiro de 1976.
Os Gallé de Antônio Faciola
Vez por outra os jornalistas paraenses — Carlos Mendonça à frente — põem em relevo o esplendor artístico a que atingiu Belém no período de 1888 a 1918, as três décadas do 'Retrospecto Histórico' de Teodoro Braga.
A cidade inteira era um autêntico museu e as galerias de pintura pertencentes a amadores, ao Estado e à Prefeitura Municipal ostentavam telas dos mais renomados pintores nacionais e estrangeiros — antigos e modernos — e objetos de arte do mais apurado gosto, carreados sobretudo da França, da Itália, da Inglaterra e da Holanda.
Carreados é bem o termo, pois não eram peças isoladas adquiridas por este ou aquele expert, mas 'opulentas coleções', como as classificou, em 1908, Osório Duque-Estrada, 'para dar idéia da paixão que se apoderou dos paraenses por tal gênero'.
Expoentes desse mostruário artístico eram os tesouros de Paes Barreto, já tantas vezes recordados, e os desse fabuloso Antônio Lemos, de quem Humberto de Campos deixou este retrato:
'Como Augusto, ele apreciava os vasos famosos — e tinha-os, nas suas salas, às dezenas. Como Francismo I, amava as esculturas — e elas se alinhavam, mudas, repousando em custosas peanhas de mármore. Como Lourenço de Medicis, adorava os pintores — e as telas se penduravam, largas, nos vinte muros do seu pequeno palácio'.
Mas, para mal de todos e infelicidade geral de Belém, não houve um 'fico' para essas jóias inestimáveis, que assim se dispersaram pelo mundo afora.
Resta hoje na cidade muito pouco, quase nada desse manancial artístico, que conservado, de preservado colocaria, o Pará no plano dos grandes centros de civilização e cultura.
Onde agora, se não em museus de categoria, iremos encontrar um Ticiano, um Rubens, um Velásquez, um Murillo e tantos outros de que se orgulhava a galeria Paes Barreto.
Refletindo sobre isso é que reputo um milagre o que ainda se vê no Palacete Faciola, último reduto, nesta capital, do que se deve e pode chamar, a justo título, uma galeria de objetos de arte.
Transcende aqui os limites do jornal a descrição dessas peças: telas, alabastros, bronzes, esmaltes, porcelanas, mármores, móveis e tudo aquilo em que deixaram sua marca mãos frementes de anseios plásticos.
Enfatizo apenas, por ser objeto desta crônica, a numerosa coleção de vasos Gallé em todos os tamanhos e formatos, com a delicadeza e o lavor únicos que fizeram famoso o seu fabricante.
Adquiriu-os em Paris Antônio Faciola, que tinha conhecimento e sensibilidade para dénicher as verdadeiras obras de arte, a ponto ali de um antiquário, iludido pelo porte do comprador, tomá-lo por um príncipe russo, na época homens de dinheiro e bom gosto.
Russo, não, príncipe, sim, no que essa palavra significa (ou significava) finura de trato, amor ao belo e consciência daquilo que faz as delícias do espírito.
Gallé (Emile) tornou-se famoso na Exposição de Paris de 1878 com o cristal Claire de Lune, inspirado na poesia de Verlaine, a quem ofereceria, anos depois, um rico vaso ornado de clematites... que o poeta trocou incontinenti por quarenta doses de absinto.
Em 1890 o artista já é nome universal e cria na velha capital da Lorena a célebre 'Escola de Nanci', onde com sua técnica de vidreiro, sua arte de desenhista e sua paixão de horticultor fabrica esses admiráveis vasos de formas souples e decoração exuberante, com as folhas, flores e libélulas que fizeram a graça do estilo Art Nouveau.
Assim e nisso reside principalmente o seu valor, os vasos Gallé não são apenas decorativos, mas também representantes do espírito de uma época em suas variadas manifestações de cultura artística.
Podemos dizer, sem incorrer em erro, que estão na estética de Ruskin, ao proclamar que 'toda forma bela é emprestada da natureza'; na arquitetura de Horta, o belga, decorando as suas construções: 'da planta, deixo a folha e a flor e empregoa a haste'; na música nuancée de Debussy, o de Prélude à l’apres-midi d’um faune e de Pelleás et Mélisande; e finalmente na concepção estética do próprio Gallet, afixada no letreiro da porta de seu atelier: 'Nossas raízes estão no fundo dos bosques, na margem das fontes, sobre os musgos'.
São esses objetos que integram as coleções da galeria Faciola, hoje sobre os desvelos filiais dos irmãos Oscar e Iná, no maior e melhor dos cultos à memória de seu pai, deputado, senador, banqueiro, livreiro, Prefeito de Belém, mas antes e acima de tudo o artista amigo de Carlos Gomes, que o intimou, um dia, a 'voltar ao seu piano'.
Não voltou. Foi um bem? Ninguém o sabe, mas talvez se voltasse não houvesse legado a nossa terra e a nossa gente esse mundo de coisas belas que fizeram do Palacete Faciola o único e verdadeiro museu da Belle Epoque no Pará."
Texto publicado no jornal A Província do Pará de 29 de fevereiro de 1976.
Imagem ampliável para leitura do original.
*Intelectual paraense falecido, foi diretor do Museu Emílio Goeldi e tradutor de Verlaine.
Foto: Ruth Campos
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