sábado, 17 de maio de 2008

Um conto exclusivo de Erasmo Vanderlei de Souza e Castro.

Nosso dileto amigo e psiquiatra Erasmo Vanderlei de Souza e Castro nos enviou um conto exclusivo sobre Belém do Pará.
Desde 1999 o Erasmo mora na Islândia e vez por outra vem matar as saudades das nossas caboclinhas aqui na Belém do xirizal.
Esse escrito, abaixo publicado como restrito do blog, tem uns três anos e foi iniciado na Cidade, na penúltima vinda do Erasmo. A inspiração se deu porque enchemos a cara no Locomotiva's, arrodeados das mais "belas" putas valdirianas, inclusive as dançarinas. Os papos foram surreais, mas...para alguma coisa serviram. Sucesso aí na Iceland bro., você merece!!!

Foto de 1997 retirada da página: www.icelandpsychiatric.gov quando o bro. tinha pinta de galã e havia telhas.

As palavras-chave alguém e ninguém

Camilla é um nome comum. Não tão simples como Maria, mas numeroso o suficiente para requerer uma completação, um sobrenome: SMITCHEN.
Camilla Smitchen fora assassinada em um quarto de hotel após um programa regado de sevícias. O fato foi banalizado pelos jornais porque C.S. não era menor, nem mesmo seria esse o seu verdadeiro nome. Na identidade constava Rosemary Silva, com duas passagens pela polícia do estado de Tocantins — nos dois casos ela colaborara com traficantes.
Ninguém se dá ao trabalho de pesquisar sobre o que não interessa. Policiais perseguem notoriedade, não pessoas. Ninguém investiga ninguém. Sabe-se de tudo isso porque Camilla Smitchen não estava em um motel e sim em um hotel. Apresentar o documento de identidade à recepção é norma em hotéis de gabarito.
Ficou registrado na memória da recepcionista a estranha e banal semelhança entre os seus nomes. Eram homônimos na ficção e na realidade. Camilla Silva, 27 anos, recepcionista do Hotel Paradigma, só fez essa analogia após ler os jornais e descobrir que Camilla Smitchen era a estrela dançarina de uma boate da cidade — Belém do Pará.
A relação entre nomes apimenta romances policiais. Camilla Silva sentiu-se invadida pela necessidade de entender o que ocorrera naquele luxuoso quarto — o 901 tinha requintes de suíte presidencial e vista panorâmica à baía do Guajará. A dançarina chegou desacompanhada. Suas roupas de grife não davam o menor sinal de sua profissão. À exceção de suas postiças unhas negras e brincos que se assemelhavam a móbiles. Uma extravagância que não estragava o indumento. A aparência singela, associada a uma beleza meio escandinava, denotava que ali estava uma alta funcionária de uma empresa do sul do país.
São os ingredientes triviais que aromatizam e dão paladar à culinária. Por mais que todos os tacacás sigam um padrão de preparo, há a essência própria da banca — há o clima, a circunstância, a instabilidade necessária. Isso talvez explicasse a predileção de pessoas em freqüentar um mesmo lugar para degustar a iguaria. As duas Camillas iam à mesma tacacazeira havia três anos. Nunca se encontraram antes do incidente no hotel. Quando dona Dora disse que a jovem que morrera na antevéspera era cliente, Camilla Silva intimidou-se e tremeu. Como poderia isso ser possível? Que geometria seria essa? Haveria alguma eqüidistância que justificasse essa justaposição complexa? Camilla Silva estava muito longe de sua casa e também do trabalho. Seria Camilla Smitchen vizinha daquele lugar?
—Senhora, por gentileza, aquela moça dos jornais morava perto daqui?
—Creio que não, respondeu dona Dora acrescentando: ela vinha de carro religiosamente às dezessete horas. Jamais faltava às quartas e quintas, exatamente como a senhora. Pela beleza e finura, há anos eu noto a presença de vocês duas. Você nunca a viu por aqui?
—Não, infelizmente não!
Dona Dora, atarantada com a freguesia, não deu continuidade ao diálogo que incendiaria o raciocínio de Camilla Silva. Voltar ao hotel nessa folga de vinte e quatro horas parecia ser o único remédio à insônia anunciada.
Antonio Carlos ocupava o lugar de Camilla na recepção.
—Não estás de folga menina? Que fazes aqui?
—Ainda estou intrigada com o que aconteceu ontem!
—Esquece isso e vai para casa...sei lá...se eu fosse tu, iria tomar um drinque para esquecer essa barbaridade!
—Eu me conheço, de nada adiantaria. Preciso ver o quarto, eu careço de entender o que aconteceu, senão enlouqueço!
—O quarto continua como estava, inclusive está com mau cheiro, a polícia só vai liberá-lo para limpeza amanhã pela manhã.
—Eles tiveram o dia todo e ainda não concluíram a perícia?
—A perícia sim, mas deve ser um procedimento de rotina. O seu Guilherme já conversou com um delegado amigo dele. O quarto vai ficar fechado por uma semana, até que a gente renumere o andar. A plaquinha “901” vai ficar na porta do quarto de serviço o tempo suficiente para que esse estigma caia no rol dos esquecimentos.
—Posso ir até lá?
—O que fazer lá? Queres te impressionar ainda mais?
—Eu acho que é uma obstinação. Vai ver é porque fui eu quem atendeu a moça!
—Dona Raimunda tem as chaves. Pega com ela!
—Tudo bem. Obrigada Antonio!
Camilla procura por dona Raimunda, uma das camareiras do hotel, que a acompanha à visita ao quarto. Dona Raimunda ausenta-se para cuidar dos seus serviços. O hotel estava lotado. A rotatividade das figuras executivas demonstrava o trânsito do lugar.
No quarto, Camilla Silva senta-se à cadeira da penteadeira. Percebendo que há vestígios significativos a uma perícia, ela evita tocar nos objetos. As roupas e a bolsa de Camilla Smitchen haviam sido recolhidas pela polícia. O quarto estava desarrumado, do mesmo modo que o encontraram após o terceiro telefonema dado pelo ocupante do 801, que reclamara dos barulhos vindo do andar superior. O senhor Erlindo Nóbrega, em depoimento dado à polícia, disse que escutara sussurros femininos desde as oito horas da noite de quarta. A gerência autorizou a entrada somente às vinte e três, após insistentes ligações e batidas na porta do 901. Não se poderia acusar de negligência, pois esse horário, entre 20 e 23h, é sempre muito conturbado e barulhento. O pessoal do hotel, na verdade, não deu muito crédito ao velho Erlindo, afinal de contas, todos já conhecem sua rabugice.
Camilla Silva, completamente imóvel, passou quatro horas observando tudo ao seu redor. Tentava ela imaginar o que ocorrera naquele cenário. Sua expressão era fiel àqueles rostos que constróem imagens de fatalidades não registradas. Daqueles que criam para si um conjunto indelével de conjecturas e, sem elas, não vivem. Sobre a mesinha com espelho, uma escova com cabelos entrelaçados. Ao direcionar seus olhos ao esquecido objeto, lembrou-se dos cabelos de Rosemary — ou Camilla Smitchen — e reconstruiu sua imagem à entrada do hotel. Foram longos minutos na recomposição dos detalhes daquela atmosfera de final de tarde — houvera um por de sol típico de setembro e o entardecer fora fresco. Em relance ao espelho, percebeu um pequeno brilho sob a cama, no carpete vermelho. Na conferência da imagem real viu que se tratava de um chaveiro, uma espécie de mosquetão, muito usado por concessionárias de automóveis. Pronto, para Camilla Silva, estabeleceu-se a conexão suficiente ao presságio. “—O que fazer?” “—Ir à polícia?” “—Alguém daria importância àquelas chaves?” Ninguém, ninguém...só ela:...alguém.
Camilla Silva lançou mão do chaveiro e da escova e as colocou em sua bolsa. Dona Raimunda nem a viu sair. Antonio Carlos, com o tumulto do hotel, muito menos. Os taxistas de plantão notaram a saída da moça. Notaram sim, mas nada anotariam em suas lembranças. Era hábito que funcionários cobrissem colegas em turnos variados. Essa era uma solução dada ao trabalho coletivo, sem prejudicar o funcionamento do Paradigma. Camilla rumou a um estacionamento vizinho para pegar seu carro: um popular, financiado em sessenta meses. Seu automóvel ocupava a vaga de número 27 daquela garagem ordinária. O número 26 abrigava um carro sem placas, correspondente à marca impressa na chave que ela havia encontrado no 901. As películas escuras impediram Camilla de imiscuir-se naquela dependência alheia. As mãos de Camilla, trêmulas, tomaram o rumo da fechadura e as travas se soltaram. “—O que fazer?” Perguntou-se Camilla, pasmada.
Camilla Silva é dona de um currículo invejável. Formada em administração de empresas e pós-graduada em hotelaria, trabalha no Paradigma há quase seis anos. Por mais que a empresa reconheça-lhe muito valor, ao ponto de financiar-lhe aperfeiçoamentos profissionais, seu salário não dá para custear os agregados que se abrigam em sua casa. Nasceu no Marajó e é o mais importante membro de uma família unida pelos laços de rio. Sua mãe morreu quando ela era garota. Seu pai, dada a ignorância dos habitantes do lugar, e, muito mais a dele próprio, fez mais de trinta filhos, inclusive com suas próprias filhas. Moça bonita, determinada, sempre esteve presa aos valores instituídos por uma velha fazendeira que ajudou em sua criação e formação.
O que fazer Camilla Silva? O que fazer? Para quem já resolveu questões inomináveis da miséria, o que há de tão complexo em um carro já aberto, sem placas, em que a possível dona esteja morta? Não te apoquentes Camilla Silva! Não te apoquentes! Se bem pensou nesses instantes, foi pouco para que Camilla deixasse de dar partida e rumasse à sua casa, na Cidade Nova — Ananindeua, grande Belém.
O que parecia ser medo transmutou-se em glória. Um orgasmo foi propiciado pela situação inusitada e involuntária. Preliminares houve Camilla, preliminares houve! Mais de quatro horas para que esse ato se consumasse, de fato. Agora você dirige o que pertence à sua premonição. Vá e leve consigo aquilo que pode ser o verdadeiro remédio à sua insônia: a própria vigília.
Camila Silva chega em sua casa à uma hora da manhã. Na garagem há um portão eletrônico que é acionado pelo controle guardado em sua bolsa. O carro é posto em ambiente coberto e fechado — um lugar seguro. Os vizinhos não perceberiam, pela manhã, um veículo diferente do habitual. De qualquer forma, a área é bastante movimentada durante o dia. Tempo e tranqüilidade estariam garantidos às investigações.
Camilla Silva deita-se, mas não consegue dormir. Trabalhar nas possíveis pistas pela manhã era o objetivo, contudo, seu sobressalto a fez iniciar os exames naquela madrugada mesmo. Sentou-se ao banco do carona e tentou identificar odores. Procurou abstrair a base de todos os cheiros: o do silicone. Afinal, por “sorte”, o carro é novo. Poucas fragrâncias freqüentaram aquela cabine. Alguém como ela teria a capacidade de bem pesquisar sobre alguém como Camilla Smitchen. Alguém pode e deve descobrir algo sobre alguém, porque ninguém investiga ninguém. O espelho descartou de vez a polícia, não o da penteadeira, mas o do estojo de maquiagem de Camilla Smitchen, acomodado, junto com os documentos do carro, no porta-luvas.
Uma hora sentada sobre o banco de couro foram insuficientes para aquietar a excitação. Aquele carro era uma despensa de indícios. Camilla Silva precisava alimentar-se, sua última refeição fora às dezoito e trinta do dia anterior — o fatídico tacacá que estimulou toda aquela situação.
Às proximidades da residência de Camilla Silva há muitos motéis. O carro de Camilla Smitchen, pelas características, é dissimulado. A nota fiscal, o registro do veículo e o manual do proprietário estão sob o poder de Camilla Silva. As placas sobre o banco de trás. A licença para o tráfego temporário colada ao pára-brisas e seu sobrenome também é Silva. Carro emprestado de prima para prima não desperta desconfiança em policiais, muito menos quando é uma motorista solitária. O que a impediria então de ir a um motel para, na ausência de todos, vascular toda a vida da morta? Camilla Silva seguiu para o Pégasos e pediu, pelo interfone, camarões empanados — esse, com a certeza cabal, seria o prato predileto de Camilla Smitchen —, porque todas as putas são alucinadas por camarões.
O Pégasos é o motel mais caro da área. É famoso pelo seu hermetismo: um cartão magnético, entregue na guarita de entrada, permite acesso aos espaços de uso exclusivo do cliente. Um sensor de presença, ativado pelo calor do automóvel, lacra a possibilidade de entrada e saída, só revertendo a operação com o código base e o cadastramento de uma senha de oito dígitos alfanuméricos. Cinco minutos após adentrar os aposentos, uma gravação, propagada pelo sistema de som, dá-lhe as boas vindas e solicita que haja comunicação com uma das atendentes para informar a intenção de estadia e consumo. Era um sonho de Camilla Silva trabalhar naquele empreendimento, contudo, os recursos humanos foram contratados no estado do Paraná. Camilla Silva disse que pernoitaria e solicitou que o café da manhã, para dois, fosse servido às dez horas. Por que para dois? O café da manhã do Pégasos é um sonho: farto e delicioso. Camilla Silva degustaria os dois, ou levaria o que sobrasse para casa. O pedido também sugestionaria um acompanhante, já que as películas impossibilitavam a percepção do interior do automóvel. Se o dejejum estava embutido no pernoite, por que não aproveitar essa benesse?
Camilla Silva deliciou-se com o prato de camarões. Por duas horas esqueceu-se do que fora fazer no Pégasos. Todo aquele glamour dava-lhe a sensação de uma auto lua de mel.
Havia muito trabalho a fazer. Esquadrinhar todo aquele automóvel seria uma tarefa árdua. Camilla Silva já havia encontrado o estojo de maquiagens, os documentos do carro e as placas. O que mais Camilla Smitchen mostraria a Camilla Silva?
A iluminação da garagem tem o controle de incidência por intermédio de um botão giratório. Camilla Silva deixou-o no máximo. Havia luminosidade suficiente para revirar tudo. O porta-malas foi priorizado. Apesar da dificuldade para abri-lo, Camilla Silva encontrou uma pequena valise de couro. Abaixo do carpete, no compartimento de ferramentas, havia dois pacotes de tamanhos e embrulhos diferentes. Todo o achado era posto ao lado do automóvel. Sobre o banco traseiro, somente as placas. Camilla Silva retirou todos os tapetes. No assoalho de trás deparou-se com um celular fino e negro, quase imperceptível àqueles que não aguçassem o olhar. Embaixo do banco do carona, uma caixa de fósforos da Nigth Letter Club, onde Camilla Smitchen era a celebridade nua da discoteca. Todo esse aparato subiu ao quarto com Camilla Silva. Camilla Silva fizera sexo com alguns homens, mas nunca fora a um motel com tanta incitação e desejo.
Todo o material investigativo foi espalhado na enorme cama do quarto 901 do Pégasos. Novecentos e um, tal qual o do Paradigma. Qualquer boa trama deve incidir em um ponto comum, em um nome comum, em um número comum. Quando o autor tece a teia, finge ele ser uma aranha, quase pronto para pegar o incauto, o inseto, o ninguém. Alguém pega ninguém! Ninguém pega alguém! Este é o espírito da prosa.
Resta-nos acompanhar Camilla Silva à cama. Não há testemunhas, não há suspeitos. Camilla Silva — a viva — e Camilla Smitchen — o espectro — protagonizam o crime. Somente a partir dessa invulgar relação é que encontraremos os elementos necessários ao entendimento da ocorrência.
Camilla Silva retira um canivete suíço de sua bolsa e inicia o desembrulhar dos dois pacotes. O menor, envolto por vários giros de fita crepe, causa-lhe dificuldade. Camilla Silva corta o dedo indicador da mão esquerda. Apesar do sangue, a operação continua de forma desajeitada. A surpresa: um saco de pano, daqueles de guardar pares de sapato, com muitos blocos dobrados de surradas notas de 100 dólares. A dobradura do dinheiro era esquisita, isso dava a conformação insuspeita ao pacote. O encadeamento das cédulas, uma possível prensagem hidráulica, a amarração por tiras de câmara de pneu e fraudas de pano evitavam o discernimento visual e tátil desse achado. Camilla Silva atemorizou-se com o inesperado, mas arriscou na estimativa: 200 mil dólares, em brasa.
O invólucro maior era de papel madeira, diversas passagens de fita durex o encobriam. Por dentro jornal, muitas páginas de jornal. Quando Camilla Silva o perfurou, sentiu de imediato o cheiro característico do camarão seco. Camarão seco e folhas murchas de jambu. Que absurdo, a maluca (morta) era mesmo alucinada por tacacá! Mas de onde seria o periódico? No afã de descobrir esse curioso detalhe, Camilla Silva separa as folhas e derrama os camarões por sobre a colcha. O jornal era de Palmas. Mas camarões e jambu escondiam outro conteúdo: cocaína. Três quilos da mais pura, ou: três quilos de ouro na cotação do mercado. Camilla Silva foi à loucura. Deitou-se de costas e respirou fundo. Nada sabia pensar. Nessa posição ficou por longa meia hora.
Camilla Silva levantou-se e foi ao banheiro. Um demorado banho a fez relaxar. Vestida com um roupão do Pégasos, foi à copa comer as sobras de seu pedido. Já amanhecera, eram seis e dez da manhã. Camilla Silva interfona e avisa à recepcionista que um dos cafés deve ser servido naquele momento, o outro, às dez. —Mais alguma coisa, Senhora? —Ah, sim! vou ficar hospedada. Algum problema? —Não, não. Fique a vontade!
Camilla Silva despeja o que continha na valise, organiza a droga e os dólares e nela os guarda. A maletinha é posta sobre a penteadeira.
A cama está repleta de camarões, jambu e os pertences pessoas de Camilla Smitchen: minúsculas roupas íntimas, uma peruca preta longa, uma agenda de couro e um nécessaire. No nécessaire Camilla Silva encontrou escova de dentes, pasta, seis batons carmins, três rímeis, uma escova de cabelo, uma caixa de absorventes internos, dois maços de Carlton Red, um isqueiro Zippo dourado, uma navalha e as giletes que a carregam.
Os camarões, o jambu e os jornais são postos no cesto de lixo do banheiro. Enquanto Camilla Silva aguarda o dejejum, deita-se rapidamente para folhear a agenda de Camilla Smitchen. A letra é um garrancho: sofrível. As anotações parecem um inventário dos programas que ela fizera ao longo do ano, mas não davam pistas sobre os seus, ou suas, clientes. Traduzindo, para um português razoável, trechos dos escritos de Camilla Smitchen: “J.E., o canhoto, me deu 2000 Reais. Um nojento fedido. Que merda!”; “Tô com saudade do meu macho. Quando será que E.N. volta da merda da viagem?”; “Aquela vagabunda me mordeu toda. Fiquei marcada. Vou ter que colocar base para dançar. Puta que a pariu! Não gosto de mulher, mas a fodida paga bem: pegei três mil pelas chupadas. Só valeu pela grana da cadela velha mal amada”. Não se lia um nome. Telefones eram postos ao lado de desenhos toscos, garatujados. O significado dessas notas só poderia ser decifrado por sua própria autora, a morta.
A cigarra anuncia que o café da manhã está servido. Camilla Silva segue para a copa levando consigo a agenda de Camilla Smitchen. A mesa, além de bem organizada, está repleta do bom e do melhor. Camilla Silva se delicia com tudo. Glamour e fome se pelejam. A estafa incomoda, mas não há sono. Procurar por ele seria render-se a um desmaio. Saciada, Camilla Silva sente uma incontrolável vontade de fumar — ela parara de fumar havia quase dois anos. Maços de cigarro e isqueiro estavam no necessaire de Camilla Smitchen. Camilla Silva os apanha e volta à mesa. O Zippo não acende pela falta de fluído. Duas caixas-de-fósforos do Pégasos faziam-se visíveis sobre uma bancada. Ao ver aquilo, Camilla Silva lembrou-se do Night Letter Club. Voltou à cama para procurar os fósforos que ela encontrara sobre o assoalho do automóvel, abaixo do banco do carona. Ao abrir o envelope de fósforos — típico de restaurantes, hotéis e motéis e, também, de filmes policiais — ela observa a falta de sete palitos e a existência de uma inscrição: “Sou uma Mulher Insaciável que Tem Confiança no Homem Erlindo Nóbrega”.
“—Erlindo Nóbrega fora o hóspede que denunciou o barulho no quarto acima do dele — o 801 do Paradigma. Era ele o coronel dela, ou o seu caraxué. SMITCHEN sempre foi uma sigla. Como alguém carregaria um nome artístico cifrando uma declaração a um homem? Só por muito carinho, devoção, dependência...sei lá?...loucura, loucura!!! Ele a matou!!! Ele a matou!!! E agora, meu Deus, o que faço?!”
Se ficara evidente para Camilla Silva que Erlindo Nóbrega matara Camilla Smitchen, não há dúvida, para todos nós, que Camilla Silva está em uma sinuca de bico. Ela possuí duzentos mil dólares, três quilos de cocaína, um carro furtado e o conhecimento da identidade do assassino de uma dançarina de cabaré.
Camilla Silva entra em ebulição e perde momentaneamente seu norte. Vomita no vaso sanitário todo o dejejum. Alterna o quente e o frio da ducha por uma hora. Cai no sofá e dorme por quatro hora. Ao espantar-se percebe que é meio-dia. Lembra-se que deve dar uma satisfação ao pessoal do hotel. Ela tem de estar no trabalho, às 17 horas. Pede à recepcionista que faça uma ligação para o hotel Paradigma. Procura falar com Antonio Carlos, mas ele fora rendido pelo senhor Guilherme, uma espécie de gerente geral com atributos de comandante.
—Boa tarde seu Gilherme, aqui é a Camilla, tudo bem com o senhor?
—Não, dona Camilla, não está nada bem. Procuramos falar com a senhora pelo telefone de sua residência, pelo seu celular, e nada!
—Desculpe-me seu Guilherme, eu tive alguns contratempos, mas vou trabalhar às 17 horas.
—A polícia esteve aqui no hotel e queria algumas informações suas sobre a moça assassinada. Afinal, só você e o ascensorista entraram em contato com ela aqui no hotel.
—Pelo amor de Deus seu Guilherme, eu pensei que eles tivessem encerrado as perguntas quando falaram comigo na madrugada de ontem.
—Tudo bem, tudo bem, eu vou falar com um amigo para evitar que perturbem vocês, mas...o rapaz do estacionamento...
—Não entendi, seu Guilherme!
—Ele achou muito estranho você ter deixado o seu carro todo esse tempo lá.
—Ah! Tudo bem...ele não pegou...e não havia ninguém para empurrá-lo, por isso o deixei lá.
—O rapaz deu por falta de um carro novo que estava estacionado ao lado do seu. É possível que pertencesse a moça assassinada, não há certeza, mas...
—O.K., seu Guilherme, às 17 estarei aí, até logo.
A situação complicou-se, pensou Camilla Silva. Todavia ela solicitou à atendente que providenciasse um taxi. Disse que iria resolver alguns problemas na cidade, mas que seu marido ficaria no Pégasos, dormindo. Camilla Silva vestiu-se velozmente e colocou a peruca de Camilla Smitchen. Usou corretamente o cartão magnético para sair do quarto e apanhar o taxi, que já a aguardava defronte do 901. Disse ao motorista para deixá-la em um supermercado não muito longe dali. O supermercado, como era de costume, estava abarrotado de gente. Ela foi ao banheiro, colocou a peruca na bolsa e apanhou outro taxi em direção ao Paradigma. No Paradigma encontra seu Guilherme, que a percebe muito excitada, pálida e sem maquiagem. Ela lhe diz que se sente muito mal. Que está com uma hemorragia menstrual e que não tem condições para cumprir seu turno. Seu Guilherme entende a situação e faz algumas ligações para arranjar outra pessoa que a substitua. Camilla Silva busca seu carro no estacionamento. Ao chegar em sua casa diz à tia, uma espécie de governanta, que precisa ir ao médico antes do trabalho. Comenta que o carro tem problemas e que sairá de taxi para resolver tudo. Fala à tia para não se preocupar e evidencia que seu celular está sem comunicação — de fato estava, Camilla Silva esquecera de carregá-lo.
Camilla Silva sai de casa a pé. Entra no movimentado supermercado e saca 800 reais em um caixa eletrônico, o suficiente para quitar a conta do motel. Seria muito suspeito que ela pagasse com dólares. Seu plano era sair com o carro e abandoná-lo no estacionamento do agitadíssimo supermercado.
Camilla Silva volta, de peruca, ao Pégasos. Tudo deveria ser ligeiro. Ela precisava aproveitar o tráfego intenso daquele horário. Preocupada com todo e qualquer indicio, inicia uma verdadeira faxina no quarto com alguns produtos comprados no Alvorada Hiper Center. O celular que ela achara no automóvel toca. Camilla Silva, em pânico, percebe, pelo visor, que se tratava de E. N. — já sabido como Erlindo Nóbrega. A ligação chega ao fim sem que ela atenda. Nova chamada se inicia. Camilla Silva resolve atender dizendo: ”—o que queres, assassino?” A resposta é seca: “—o que me pertence, sua vaca!”
Camilla Silva é encontrada sobre a cama do nº901 do Pégasos. As marcas de sevícias são idênticas às da dançarina do Night Letter Club. Ela vestia as peças íntimas de Camilla Smitchen, seu rosto e peito estavam lambuzados de cocaína e algumas notas de 100 dólares entupiam seus orifícios. Nada além disso havia ali.
Camilla Silva jamais imaginara que o proprietário do empreendimento que ela sonhara em trabalhar, o Pégasos, seria o senhor Erlindo Nóbrega — um rico paranaense com negócios em Belém e Palmas.
Alguém sempre encontra ninguém.

Erasmo Vanderlei de Souza e Castro é psiquiatra, executivo e escritor.


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