Este é um congresso de médicos, mas aqui não serão tratados, ou debatidos, aspectos técnicos ligados à Medicina. Os médicos escritores nos reunimos anualmente, assim nas jornadas como nos congressos nacionais, para discutir ou repassar vivências e conhecimentos adstritos à literatura ou discretear sobre temas de interesse cultural em suas diversas nuanças. Por isso que vimos a esta sessão trazendo assunto aparentemente desvinculado de um conclave de que participam, quase à exclusividade, os seguidores de Hipócrates, mas, na verdade, que visa a enaltecer o trabalho de dois médicos de têmpera superior e que também foram escritores de livros convencionais e de páginas sublimes da História recente.
A Rodovia Belém-Brasília, que vem de completar o cinquentenário de abertura, juntamente com a inauguração de Brasília, teve uma trajetória de verdadeira epopeia entre a decisão e a concretização dos sonhos de dois homens notáveis: Juscelino Kubitschek e Waldir Bouhid. A determinação e o arrojo marcaram a personalidade desses dois gigantes, como já a seguir se verá - e é sobre aspectos dessa partitura épica que pretendemos discorrer - composta a quatro mãos por JK, um médico – também exímio escritor - que chegou ao pináculo da glória e da fama em função das obras que ousou fazer, que o tornaram conhecido de todos, e por outro médico, Waldir Bouhid, também mineiro de berço que se fez parauara do grão por adoção, mas que, em contraposição a JK, desconhecido, quase anônimo, como, aliás, soem ser as pessoas, coisas e fatos ligados ao Norte, que ocupava, à época, a superintendência da SPVEA e como tal causava espécie aos que lhe não conheciam as aptidões e os méritos. Um médico a dirigir um órgão que se pretendia viesse a alçapremar e valorizar a economia amazônica? Viu-se depois que esse era o homem certo, indicado para o lugar certo.
Sabe-se muito, quase tudo, a respeito de Brasília e obviamente sobre JK, “o maior visionário pragmático que governou nosso País” no dizer de Baggio, mas sabe-se pouco, quase nada, sobre a Belém-Brasília, sua segunda obra de primeira grandeza, cuja abertura e implantação se constituem, sem ponta de dúvida, em empreitada trabalhosa, esfalfante, quase ínvia, mas grandiosa e grandiloquente por si mesma.
No início de 1958, o Presidente Juscelino Kubitschek reuniu, no Palácio dos Leões, em São Luís do Maranhão, os Governadores da Amazônia e do Nordeste bem como os dirigentes de órgãos federais para comunicar-lhes sua decisão de construir a Nova Capital da República, cuja inauguração já havia adrede fixado para o dia 21 de abril de 1960.
Após a exposição do Presidente Juscelino a respeito das obras infraestruturais de transporte e comunicação planejadas para proporcionar condições de desenvolvimento à nova capital, Waldir Bouhid, Superintendente da SPVEA, verificando que o Pará estava fora do projeto global, fez ver que, sem uma rodovia interligando a capital paraense ao planejado Distrito Federal, este nada significaria para Belém, naquela época com ligação direta com o Rio de Janeiro, sede do governo federal, apenas por meio de navios e de aviões.
O engenheiro Régis Bittencourt, Diretor Geral do DNER, homem de grande conceito e renome, consultado no ato por Juscelino sobre a viabilidade técnica da construção de uma rodovia entre Belém e Brasília, abriu o mapa do Brasil e, assinalando o enorme trecho de floresta virgem, disse ser humanamente impossível à engenharia nacional realizar obra daquele vulto, no prazo de dois anos. Tentava-se “pôr a água da razão no vinho puro da sabedoria divina”, a redizer São Boaventura.
Sem se dar por vencido, Waldir Bouhid lançou o desafio: “Presidente, não sou engenheiro rodoviário, sou médico sanitarista. Entretanto, se Vossa Excelência conceder-me os meios, a SPVEA construirá essa rodovia para ser inaugurada juntamente com Brasília”. – E quem você acha que poderia se encarregar da tarefa? - indagou Nonô (terno apelido de infância). Bouhid não tergiversou: “Eu mesmo, presidente; conheço palmo a palmo a região, tenho prática de lidar com mateiros e como homem do Pará sempre sonhei com essa estrada e farei qualquer sacrifício para vê-la construída” Tomado de surpresa - e maior firmeza - o diamantino presidente concluiu: “Pois então, senhores, começaremos amanhã!”. Mais do que nunca cabe repetir aqui os imorredouros versos de Fernando Pessoa: “Deus quere, o homem sonha, a obra nasce”
Em suas memórias, “o poeta da obra pública”, como o chamou Guimarães Rosa, veio a assentar as razões das estradas em seu plano de metas: “Eu via o Brasil como um enorme território fechado no qual era preciso abrir um cruzeiro de estradas”. A Belém-Brasília era apenas um braço dessa imensa cruz. A “espinha dorsal do País” no dizer de Sayão, a seguir qualificado.
Em 19 de maio de 1958, Juscelino sancionava o decreto nº 3.710, criando a Comissão Executiva da Rodovia Belém-Brasília – RODOBRÁS, vinculada à SPVEA e presidida pelo seu Superintendente.
Transformada em meta prioritária do governo Kubitschek, a construção da rodovia foi subdividida pela RODOBRÁS em três setores: Goiás, Maranhão e Pará. O trecho de Goiás coube ao engenheiro agrônomo Bernardo Sayão, pioneiro do desbravamento do norte goiano, após o convite desafiador que lhe formulara JK, nestes termos: “Você seria capaz de arrombar esta selva e unir o País de norte a sul? – ao que Bernardo, saltando da cadeira, resoluto retrucou: ”Este é o dia mais feliz da minha vida. Depois de fazer essa estrada já posso morrer”. Definiram-se, aí, as peças do enxadrino tabuleiro. “Sapo pula por precisão, não por boniteza”, ensina-nos a roseana sabença. Desoladoramente este herói de inquietação e bravura gigantescas viera a sucumbir, tragicamente, esmagado pelo tombo de gigantesca árvore, em pleno serviço, a 15 de janeiro de 1959.
O trabalho de desbravamento da floresta virgem, numa extensão de 600 km entre São Miguel do Guamá, no Pará e Imperatriz, no Maranhão, foi o mais dramático dessa batalha ciclópica contra as asperezas da Natureza, o tempo limitado, a falta de equipamentos adequados e o excesso de chuvas nas épocas invernosas. Os 6.000 homens lançados nessa magnífica obra de integração nacional operavam, na fase inicial de desmatamento, basicamente com machados, terçados, facões e pequenas ferramentas de uso manual, ademais da determinação e bravura. Mas são da autolavratura de Nonô os traços da melhor feição sobre a complexidade da obra: – “O entusiasmo de muitos, o heroísmo de alguns chefes como Sayão, a fria determinação de outros como Waldir Bouhid, aliado, tudo isso, a uma admirável equipe de engenharia e de firmas empreiteiras, apoiada no trabalho anônimo de milhares de mateiros, o que parecia irrealizável se foi convertendo, aos poucos, em realidade”.
Bouhid era mineiro de Estrela, mas ainda jovem transferira-se para Belém a convite do governador da época, a fim de ocupar o cargo de Diretor da Saúde Pública do Pará, chegando a ser prefeito de Belém, deputado estadual, governador interino, elegendo-se, posteriormente, Senador da República pelo Pará (1954), mandato ao qual renunciou em 1956 ao ser indicado para o espinhoso cargo de Superintendente da SPEVEA; Doutor Honoris Causa da UFPA. Cassado em 1964, o ideólogo da Belém-Brasília teve seus direitos políticos suspensos, como tantos outros grandes homens públicos daqueles plúmbeos tempos, inclusive o próprio JK.
Longe dos momentos de tristeza causados pelo desaparecimento trágico do engenheiro Bernardo Sayão, do engenheiro paraense Rui Almeida, outro elemento de proa, e de outros trabalhadores anônimos na faina desbravadora pela conquista da Amassilva, o ponto marcante daquela obra considerada impossível foi a chegada da Coluna Norte da Caravana de Integração Nacional, em Brasília, depois de oito dias de viagem. Bastante emocionado, Waldir Bouhid, comandante da caravana, ao ser abraçado por Juscelino, que estava radiante de alegria, disse-lhe apenas: “Presidente, missão cumprida”.
No dia dois de fevereiro, houve em Brasília um acontecimento de significação excepcional na vida brasileira – uma verdadeira festa cívica de integração nacional. Brasileiros de todos os quadrantes, partindo de Uruguaiana, Porto Alegre, Belém do Pará, Fortaleza, Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte, Cuiabá, Campo Grande – para só citar alguns pontos extremos que até então não se tocavam por laços rodoviários – marcaram de modo eloquente um acontecimento histórico: o final da condição de isolamento em que viviam as nossas populações.
Outro fato bastante significativo: muitos dos integrantes das caravanas eram elementos que não acreditavam na rodovia de ligação Norte-Sul do País. Engajaram-se na coluna como novos São Tomés: queriam ver para crer. De um deles sabemos que estava convencido de que a viagem da Coluna Norte seria uma farsa bem engendrada e que as viaturas e os passageiros seriam transportados de aviões de um ponto para outro da selva, onde só existiam os campos de pouso, abertos de 100 em 100 km. Para esse desconfiado foi uma agradável decepção ver aquele sulco gigantesco desvirginando a intocada floresta que parecia intransponível...!
Começava nesse ponto o segundo round da batalha, tão renhido quanto o primeiro, o da aceitação daquela primeva vereda transilvana por parte dos aversos, críticos e detratores do estradão de Nonô – não fora ele o artista do impossível! -, que por meio de ironia, sarcasmo, mordacidade e/ou maldisfarçada inveja - mãe de todos os pecados - a inquinavam de “estrada que liga o nada a coisa nenhuma”, ou, de um político de caricato e desluzido desempenho, já “varrido” da memória nacional, que a anatematizou: “estrada para onça passear”, a exigir do presidente, mais do que nunca, a serenidade e determinação que ele fazia expressar por meio de seu sorriso sempre presente, largo e de ledo e limpo lume. “Só mesmo Nonô seria capaz de realizar tudo isto!” – na doce e maternal avaliação de D. Júlia.
Cinco décadas passadas, a rodovia de integração nacional - diria melhor! - de interação nacional, aí está: completada, consumada, amodernada. E mais: à feição do Guamá e do Tocantins que ela transpõe, esgalhada de ramos vicinais frutificados, deixando para trás da Amazônia somente o “verde vagomundo” de Bené Monteiro, embotando as lendas do boto que faz mal às moças.
JK foi para nós talvez a gema mais preciosa saída das Minas Gerais e Waldir Bouhid o grande artífice executor dessa magnífica joia lapidada. Dois médicos que, com suas poções e meizinhas, curaram da inanição e do isolamento este gigante adormecido eternamente em berço esplêndido.
JK foi para nós talvez a gema mais preciosa saída das Minas Gerais e Waldir Bouhid o grande artífice executor dessa magnífica joia lapidada. Dois médicos que, com suas poções e meizinhas, curaram da inanição e do isolamento este gigante adormecido eternamente em berço esplêndido.
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Texto publicado em Recanto das Letras.
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